sábado, 28 de setembro de 2013

Em defesa de um futuro


Zero Hora
28 de setembro de 2013 | N° 17567

PARA PENSAR A CIDADE

Em defesa de um futuro

Professor de arquitetura comenta o movimento pela preservação das casas da Rua Luciana de Abreu

Com frequência, as questões atinentes ao patrimônio arquitetônico ganham destaque e, pela sua relevância, não dizem respeito apenas àqueles envolvidos por dever de ofício. E é isso o que está ocorrendo em Porto Alegre, resultado da ameaça de demolição de um significativo conjunto de casas localizadas na Rua Luciana de Abreu, no bairro Moinhos de Vento.

Trata-se de um caso particular, mas que envolve questões que o transcendem e como tais devem ser tratadas. E é isso que me proponho fazer, sobretudo, a partir daquilo que há quase um século foi dito pelo austríaco Max Dvorák (1874 – 1921), historiador da arte da Escola de Viena, no seu livro de 1916 Catecismo da Preservação dos Monumentos, escrito “a partir do ponto de vista de quem convive com problemas relativos ao patrimônio, identificando uma grande quantidade de atitudes prejudiciais à sua preservação”. No capítulo intitulado Perigos que Ameaçam os Antigos Monumentos, ele afirmava então que eram ainda consideráveis esses riscos, cujas origens estariam: na ignorância e na negligência; na cobiça e na fraude; nas ideias equivocadas a respeito do progresso e das demandas do presente; na busca descabida de embelezamento e renovação; na falta de uma educação estética, ou numa educação estética equivocada.

Malgrado o tempo decorrido da época em que foram formuladas essas denúncias, e mesmo considerando que desde então, inclusive no Brasil, avanços significativos ocorreram no que concerne à preservação da arquitetura de interesse patrimonial, os males ali elencados, e suas origens, continuam atuais. E são elas que precisam ser combatidas, seguindo os exemplos deixados por todos aqueles que a isso dedicaram parte significativa de suas vidas. Entre eles, na França do século 19, estava o romancista Victor Hugo, que, por meio do manifesto Guerra aos Demolidores, escrito em 1825, já denunciava como vandalismo aqueles atos que atingiam, por vezes de morte, o patrimônio arquitetônico, aí incluindo os imóveis de propriedade privada. “Chegou o momento de não mais permitir a quem quer que seja que permaneça em silêncio, dizia ele ... É preciso fazer parar o martelo que mutila a face do país... Quaisquer que sejam os direitos da propriedade, a destruição de um edifício histórico e monumental não deve ser permitida... Há duas coisas em um edifício: seu uso e sua beleza. Seu uso pertence ao proprietário, sua beleza a todo mundo”.

Voltando ao que afirmava Dvorák, recorde-se que já no início do século 20, “as enormes cidades configuravam-se cada vez mais como centros econômicos, nos quais a maior parte do que havia restado do passado foi sacrificada sem piedade, em nome das exigências econômicas: meios e vias de transporte, casas comerciais e escritórios... Essa transformação foi tão rápida que, muitas vezes, não se teve tempo ou iniciativa para conferir aquilo que era realmente urgente. Ao contrário, destruíram-se cidades cega e aleatoriamente para substituí-las por novas...” Frise-se que, para ele, opor-se a isso não significava ignorar que as cidades são entes vivos, sendo a mudança inerente à sua própria natureza. O problema não está aí, mas sim de que mudança se trata, quais são os seus motivos e quais as suas consequências. E nesse particular, dizia ele, “vale lembrar ainda que, muitas vezes a ‘modernização e embelezamento’ da cidade são apenas um pretexto, uma vez que a verdadeira motivação encontra-se nos ganhos obtidos pelos especuladores imobiliários, em prejuízo da comunidade” (os grifos são meus).
Dvorák não pretendia, para usarmos expressão recorrente entre os defensores do falso progresso, “engessar” a cidade. Dizia: “Seria certamente injusto e de pouca visão querer impedir que se levasse em conta as novas exigências das grandes cidades. Obviamente, na grande maioria dos casos, não se trata disso, mas de uma modificação tipicamente rotineira, através da qual... (se) destroem antigas partes da cidade sem a menor razão, onde se poderia, com o mínimo de boa vontade, ter salvado muita coisa que foi intencionalmente destruída para sempre” .

No caso aqui em questão, destaque-se que aqueles que defendem a manutenção das referidas casas não o fazem de maneira indiscriminada. Não são contra qualquer demolição, pois se assim o fossem, ter-se-iam igualmente oposto àquelas que estão ocorrendo, por exemplo, na rua Doutor Timóteo. Os que estão em defesa da Luciana de Abreu são movidos por motivos dignos. Apenas não concordam com a absurda afirmação de que os proprietários daqueles imóveis têm o direito de usá-los como melhor lhes convier. Nem tampouco, como já foram acusados, são prisioneiros do passado, mas sim defensores de um futuro que, no caso, não ignora o valor e a singularidade do patrimônio herdado das gerações precedentes; conscientes de que não temos o direito de destruí-lo e jamais poderemos recriá-lo.
Pergunto-me o que aconteceria se as antigas casas da Rua Padre Chagas, que individualmente não possuem grande valor histórico e artístico, fossem destruídas, em nome do “desenvolvimento” e do direito à propriedade, cedendo espaço à construção de grandes prédios. Estaríamos, é claro, irremediavelmente destruindo algo cuja importância transcende os limites do bairro em que se encontra. Lugares como esse, com a natureza e a qualidade que têm, não se criam artificialmente, são únicos e insubstituíveis, frutos tão somente das histórias singulares das cidades onde estão.

Não se trata de tudo preservar. Seria uma atitude tão absurda e inconsequente como achar que só devem ser protegidas as obras de valor histórico e artístico excepcionais. A qualidade de vida das cidades e o significado cultural e antropológico das mesmas não se limitam a essas. Na maioria das vezes, são aqueles lugares não prestigiosos e aparentemente insignificantes os que, literalmente, mais nos tocam, pois com eles podemos estabelecer uma relação direta, próxima e sensível, sem a distância e o peso decorrentes do caráter das obras magnificentes e suntuosas. E a vida na cidade, no seu cotidiano é, ou deveria ser, constituída desses lugares que, como dizia Dvorák, “possuem uma importância incomparável e um significado que atinge a todos os homens, sejam eruditos ou não”. É preciso pois dar eco à sua voz, fazendo-a renascer e ressoar, hoje ainda mais forte do que antes, posto que, como dizia ele, quem destrói arquitetura de valor patrimonial “é um inimigo de sua cidade e de seu país e prejudica a comunidade, pois as obras de arte públicas não foram criadas para esse ou aquele indivíduo, e aquilo que elas encarnam enquanto obras de arte... recordações ou qualquer outro sentimento, é um patrimônio... Ter consciência disso deve ser uma obrigação de toda a pessoa culta”.

É verdade que Dvorák usou, sobretudo, a expressão “monumento” associada à palavra “patrimônio”, o que é compreensível para sua época. Mas é igualmente verdade que esse último conceito foi sofrendo salutar transformação ao longo do século 20, abrangendo hoje um universo mais amplo e diversificado dos chamados bens patrimoniais. E, tudo faz crer, ele já era sensível a isso e tinha consciência de que o território do patrimônio a ser protegido não deve se constituir tão somente de obras individuais excepcionais: “A proteção de monumentos não pode se limitar a algumas obras de artes singulares, mas deve incluir tudo o que puder ser considerado um bem artístico público no mais amplo sentido do termo. E as coisas de menor importância geralmente demandam mais atenção do que as mais significativas”.

Façamos coro com o mestre austríaco, reafirmando, em alto e bom tom, que “não se poderá mais responder às questões que a respeito se colocam argumentando com ideias de progresso e novos tempos... Os administradores da cidade têm obrigação de se esforçar para que nenhum sacrifício ou esforço seja poupado quando se trata do destino de antigas construções e áreas da cidade, visto que também lhes cabe cuidar desses assuntos”, não permitindo que bens patrimoniais sejam sacrificados sem necessidade e contra os interesses da comunidade, dando assim prova de boa condução dos negócios públicos.

PAULO BICCA ARQUITETO | PROFESSOR DA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA PUCRS

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